Recentemente, influenciada pelo impacto do Prêmio Nobel, mergulhei na leitura de A Vegetariana (2007), da escritora Sul- coreana Han Kang. Confesso que não conhecia a autora, mas fui rapidamente envolvida pela sua escrita subversiva. Ao terminar o livro, fiquei impactada pela forma como Han Kang tece uma narrativa que é, ao mesmo tempo, delicada e brutal. Quero enfatizar que a obra não é simplesmente uma história sobre uma pessoa que opta por seguir uma dieta vegetariana; é, na verdade, uma obra que explora as profundezas do sofrimento humano. A história de Yeong-hye é contada pelos olhos de três membros de sua família: seu marido, seu cunhado e sua irmã In-hye
O marco inicial da narrativa é a decisão inesperada de Yeong-hye de abandonar o consumo de carne, anunciada de forma abrupta ao marido. A decisão de Yeong-hye provoca enorme constrangimento ao marido e ao pai, resultando em um confronto com as normas patriarcais que permeiam a sociedade. Ao recusar carne, Yeong-hye não apenas desafia as convenções alimentares, mas também questiona o alicerce das expectativas sociais e familiares. Desse modo, toda a sociedade, incluindo seu próprio marido e familiares, viram as costas para ela e se tornam seus inimigos.
Pierre Bourdieu, sociólogo francês, afirma: “”A violência simbólica é a violência que se exerce através da imposição das normas e das estruturas sociais que, ao serem aceitas como legítimas, se tornam invisíveis, mas ao mesmo tempo, são profundamente eficazes (BOURDIEU, p. 16, 1996)”. Nessa visão, a decisão de Yeong-hye em A Vegetariana reflete uma resistência contra uma violência simbólica que não é apenas um ato de negação ou desaprovação, mas um esforço para contestar uma estrutura que regula e oprime os corpos, expectativas e escolhas femininas, especialmente em contextos patriarcais. Ao se recusar a seguir as normas alimentares e sociais, Yeong-hye não apenas desafia o sistema, mas também questiona as expectativas sociais e as normas que governam o comportamento feminino na sociedade coreana.
Saffioti (2011) define o patriarcado como uma estrutura de poder hierárquica que coloca a mulher em uma posição subalterna em relação ao homem, justificando sua dominação e exploração. A autora argumenta que esse sistema se sustenta tanto pela ideologia quanto pela violência, sendo a última essencial para a manutenção da primeira. Nesse contexto, a ocorrência da família de Yeong-hye, especialmente por parte de seu pai, representa uma tentativa de forçá-la a se conformar aos valores patriarcais estabelecidos, impondo-lhe a adaptação aos ideais de controle e subordinação.
Diante disso, na visão de Souza (2021), a violência física e emocional infligida a Yeonghye por seu pai não começa com sua adesão à dieta vegetariana. Na narrativa de In-hye, é evidente que a inadequação de Yeonghye aos padrões de feminilidade remonta à sua infância, o que a coloca como o alvo central da violência do patriarca da família. Tendo sua identidade enquanto ser humano negado, sendo constantemente silenciada e violentada em nome de um ideal de mulher e esposa, Yeonghye tenta se rebelar-se retomando o controle sobre seu próprio corpo, ao parar de comer carne.
Para finalizar, destacarei dois momentos que me deixaram emocionalmente abalada: Quando Yeonghye se recusa a manter relações sexuais com seu marido, Jeong a estupra, sua resistência torna-se objeto de entretenimento e sua dor uma fonte de prazer para ele. A divisão imposta pelo patriarcado, que exige das mulheres a conformidade com o ideal de feminilidade — esposas submissas, encarregadas das tarefas domésticas e da satisfação sexual — leva à sua objetificação e, finalmente, ao estupro. Jeong não enxerga Yeonghye como uma mulher, com seus próprios desejos e vontades, mas como uma esposa cujo único propósito é atender às suas necessidades sexuais.
Além disso, a cena entre Yeonghye e seu cunhado em A Vegetariana é uma das mais perturbadoras e complexas da obra, revelando as camadas de poder, abuso e desejo reprimido dentro da dinâmica familiar. O cunhado, que é o narrador da segunda parte do livro, fascina-se pela irmã de sua esposa de uma maneira que ultrapassa os limites do que seria considerado aceitável. Inicialmente, ele a vê como uma musa, um objeto de desejo, cuja recusa em se conformar com as normas sociais e familiares parece despertar nele uma atração tanto física quanto emocional.
O episódio começa com uma relação de poder, onde o cunhado se sente atraído pela resistência de Yeonghye, especialmente em relação à sua decisão de não comer carne e sua busca por se libertar dos valores patriarcais. Para ele, ela representa uma figura quase mística, uma mulher que desafia uma estrutura de controle que define uma feminilidade tradicional. No entanto, essa atração vai além da admiração, tornando-se um impulso de dominação, onde ele sente que pode explorar seu corpo como um objeto, sem considerar suas emoções ou o impacto de suas ações.
O ponto culminante da cena é o momento em que o cunhado, imerso em sua obsessão, aproxima-se de Yeonghye de uma maneira invasiva, buscando uma conexão que, na realidade, é apenas um reflexo de sua própria necessidade de controle. Ele a vê como um corpo a ser possuído, e o ato de violência sexual que ocorre não é apenas uma transgressão física, mas também uma expressão de um sistema patriarcal profundamente enraizado, onde a mulher é objetificada e tratada como um meio para satisfazer os desejos masculinos. O abuso não é apenas físico, mas simbólico, refletindo o modo como a sociedade patriarcal e as normas familiares fazem da mulher uma figura a ser controlada e possuída, negando-lhe qualquer agência sobre seu próprio corpo e suas escolhas.
Portanto, ao longo da história de Yeonghye, a autora expõe as várias camadas de opressão que as mulheres enfrentam, desde o olhar paternalista de um marido controlador até os abusos realizados por um cunhado que desumaniza a protagonista. Essa dinâmica de violência, que se insere num contexto patriarcal, mostra como as mulheres são constantemente objetificadas e despojadas de sua autonomia. O sofrimento de Yeonghye não é apenas pessoal, mas um reflexo de uma sociedade que nega a liberdade feminina, tratando o corpo da mulher como um campo de batalha para afirmação da autoridade masculina.