O intrincado enlace entre literatura e fantasia: uma reflexão sobre os mecanismos criativos a partir da psicanálise

           As teorias de Sigmund Freud, incluindo os três níveis de consciência, a teoria da personalidade, o Complexo de Édipo e o estranho, são frequentemente usadas na análise literária. O próprio Freud usou sua própria teoria psicanalítica para analisar a literatura e até publicou livros sobre ela, incluindo seu ensaio de 1907 “Delírio e Sonho na Gradiva de Jensen”.

         Diante disso, é importante lembrar que Freud afirmou: “O mecanismo da poesia (criação literária) é o mesmo das fantasias histéricas” (1897/1996 p. 306), ao fundamentar a análise da obra Os sofrimentos do jovem Werther (1774) do escritor alemão Goethe; romance que narra a história de Werther, um jovem que comete suicídio após não ser amorosamente correspondido. Diante da citação, é perceptível que Freud alega que o processo de criação literária tem semelhanças simétricas com o que constitui as fantasias histéricas. Dessa forma, o psicanalista sugere que tanto na poesia quanto nas fantasias histéricas, existe uma expressão criativa que envolve a participação do sujeito e representa, frequentemente de forma distorcida pelos mecanismos de defesa psicológicos, a realização de desejos, os quais são, em sua maioria, inconscientes.

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           No ano de 1908, Sigmund Freud apresentou em sua conferência, sobre a criação literária, “O escritor e a fantasia” duas perguntas importantes:

“de onde esta singular personalidade, o escritor, retira o seu material […] e como logra nos tocar tão fortemente com ele, provocando em nós emoções de que talvez não julgássemos capazes [?].”

            Nessa visão, de acordo com Rocha 2015, Freud delineia uma linha contínua que se estende desde as brincadeiras infantis até as fantasias, dos devaneios para os sonhos noturnos e, por fim, para a criação literária, para então retornar às brincadeiras infantis. Ele mantém a percepção de uma similaridade estrutural entre as narrativas fictícias da literatura e a elaboração novelística da neurose. Essa percepção sugere que os mesmos mecanismos estão em ação tanto na produção literária quanto na elaboração psicanalítica da neurose. No entanto, para o escritor, não é necessário discernir conscientemente as leis do inconsciente que ele descobre em si mesmo; essas leis simplesmente se tornam parte de sua criação estética.

 

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                Sendo assim, Freud (1908/2015) enfatiz que tanto o escritor quanto o artista em geral levam a sério seu mundo de fantasia, atribuindo-lhe intensos afetos enquanto o mantêm claramente separado da realidade. Enquanto o sujeito neurótico recorre aos devaneios, ou sonhos diurnos, como uma forma de aliviar as fantasias cotidianas, o artista encontra sustento na própria fantasia. Nesse contexto, o artista resgata uma posição infantil como uma maneira de reencontrar o prazer experimentado na brincadeira infantil, o que contrasta com o adulto neurótico, que raramente expressa suas fantasias e, quando o faz, é através dos devaneios.

“Talvez possamos dizer que toda criança, ao brincar, se comporta como um criador literário, pois constrói para si um mundo próprio, ou, mais exatamente, arranja as coisas de seu mundo numa ordem nova, do seu agrado” (FREUD, 2015b, p. 327).

Segundo Freud (1908/2015), o artista é o “sonhador em plena luz do dia”, embora o processo criativo possa variar dependendo do grau de liberdade que ele tem para criar. Por um lado, há o artista que trabalha com materiais que já possuem alguma forma de materialidade, como observado por Freud nos escritores épicos e trágicos antigos. Por outro lado, há o artista que pode criar livremente seu próprio material.

No processo de escrita, Freud (1908/2015) analisa o papel do escritor, destacando que o romance frequentemente coloca um herói como o foco da trama, buscando despertar afetos positivos no leitor. Aqui, Freud sugere uma conexão entre a vida do escritor e suas criações artísticas, onde a escrita se desenvolve em três estágios: 1) uma experiência presente, 2) que evoca uma lembrança de uma experiência anterior, 3) resultando em um desejo que é moldado pela produção literária.

É inegável recordar que quando um escritor recorre ao seu inconsciente na criação de uma obra, não é porque está lidando com segredos íntimos ou temas sombrios que emergem apesar de seus esforços para suprimi-los. Em vez disso, é através do uso de um estilo específico de escrita, narrativa e composição que ele reconhece a oportunidade de uma construção formal que permite sua própria inserção durante o ato de escrever. Ele enxerga uma abordagem singular na linguagem, da qual ele não é a causa, mas sim o resultado; ele desenvolve sua própria maneira de “libertar a língua” das restrições de uma história que o atravessa e o molda.

“O  escritor”, acrescenta Freud, “faz o mesmo que a criança ao brincar; constrói um mundo de fantasia [Phantasiewelt] que leva bastante a sério, ou seja, dota de grandes montantes de afeto, ao mesmo tempo que o separa claramente da realidade” (FREUD, 2015b, p. 327).

 

Portanto, ao analisar as reflexões de Freud sobre a relação entre a criação literária, o mundo da fantasia e a expressão artística, somos levados a reconhecer a profunda interconexão entre a mente criativa e os mecanismos psíquicos. Tanto o escritor quanto o artista, em sua busca por expressão, encontram na fantasia um terreno fértil para a construção de seus universos singulares. Enquanto a criança, ao brincar, recria e reorganiza o mundo à sua volta, o escritor e o artista, ao criarem suas obras, fazem o mesmo, porém de forma consciente e elaborada. Através da linguagem e da narrativa, eles exploram os recantos mais profundos da psique humana, dando voz aos desejos, sonhos e fantasias que residem no âmago de cada indivíduo. Assim, a criação literária e artística não apenas reflete a complexidade da mente humana, mas também oferece um meio de compreensão e catarse, tanto para o criador quanto para o público. É na intersecção entre realidade e imaginação que encontramos a essência da expressão criativa, onde o escritor se torna o arquiteto de mundos e o artista, o escultor das emoções.

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