SEM ADEUS

Leia escutando:

Eu queria ser e ter muitas coisas. Eu queria possuir o mundo, como se o mundo fosse tão pequeno quanto uma semente de girassol e eu pudesse tê-lo na palma da minha mão. Mas o mundo não é portátil e nem miúdo, o mundo é grande e cruel.
Naquele dia, que eu descobri a crueldade do mundo, anoitecia e eu estava debruçada sobre a cama, olhando a nossa foto emoldurada em um velho porta-retratos prateado. Uma perfeita pintura do passado. Na imagem da fotografia, eu sorria, um riso tão intenso, tão verdadeiro, tão feliz, enquanto você beijava a minha bochecha com a delicadeza que só o amor pode evocar. Um sentimento. Duas pessoas. Um instante de vida que se tornou eterno ao ser capturado por uma câmera.
O que sobreveio além daquela imagem, possibilitou-me redescobrir magias e sensações por muito tempo esquecidas. Dentro daquele campo magnético, eu me sentia protegida, nada de mau me aconteceria, tinha certeza. Ele me olhava e eu, finalmente, sentia que alguém me reconhecia. Sentia-me desejada e me reconhecia como uma mulher que merecia, também, ser amada.
Antes daquele anoitecer, houve um momento, só nosso, unicamente nosso. Nunca esquecerei daquele instante, quando ele me olhou em silêncio, os olhos marejados, a voz entrecortada, o abraço apertado e a promessa de retornar para aquele mundo que era apenas meu e dele.
Nunca mais quis sair de dentro daquele espaço para as frias e duras ruas cheia de pessoas anônimas. Não queria sair nunca mais daquele colo seguro e quente. Mas no terceiro mês, aconteceu algo inesperado: milhares de pessoas começaram a morrer pelo mundo todo. Ninguém estava preparado para o vírus mortal que se alastrou pelos quatro continentes e ceifou tantas vidas que os cadáveres se entulhavam pelas ruas em quantidades incontáveis, assim como se acumulavam as folhas das árvores no outono.
Lutamos contra a solidão, a ansiedade, o medo, a depressão e o vírus. Resistimos. Mas em seguida veio o tempo e a distância. E aquela vida que estava dentro do círculo da minha vida, foi embora. Não voltou. Não havia mais como endireitar o nosso mundo, quando eu também havia sido contaminada por um vírus.

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