CONTO – SINHÁ BORGES

Eu era mocinha franzina, tinha mais osso do que carne, vivia enfeitada com flores e laços no cabelo. Sentava ereta e de pernas cruzadas na cadeira de cipó que ficava na sala. Não gostava de sentar daquele jeito, achava, por vezes, muito desconfortável, mas a minha mãe ordenava uma postura de “moça de família”, principalmente, quando tínhamos visita em casa, o Coronel Borges.

A família Borges era uma das mais tradicionais e afortunadas da região. Seus antepassados vieram da região Sul do país e pelo Nordeste fizeram o seu legado, donos da maior fazenda da Serra Branca; mandavam e desmandavam na cidade. O senhor Borges era um coronel de idade, viúvo. Velho boiadeiro, procurava uma nova esposa para dar vida a sua casa, a sua cama e prendar as suas três filhas.

Painho e Mainha apoiaram a nossa união. Minha opinião e o meu sentimento de nada tinha valia. Sendo assim, casei-me. Tornei-me mulher numa noite de trovoada. Alembro-me bem daquele corpo peludo e enrugado fazendo gozo na minha virgindade. Muitas outras noites de trovoada vieram e eu apenas ficava mansa, como se deve ser, aguentando aquele caso corporal. A maior prenda que há é ser moça calma e obediente, dizia a minha mãe, enquanto me ensinava a fazer renda.

Eu não resmungava, sabia o meu lugar naquela hierarquia. Por isso, calei muitas lamentações. Ceguei muitas traições. Surdeei muitas ofensas.

Os dias foram passando e de bucho pelas goelas, eu bordava o enxoval. Trabalho de mulher prendada. Moça de família. Dona de casa. Sinhá Borges Alencar. Nome forte. Escrava branca? Sim! Sentia-me uma escrava presa dentro de um casamento sem alforria. Tão certo, para sempre, Sinhá Borges Alencar.  Nunca mais Aurora Arruda.

Muitas noites, eu ficava espremida na cadeira de balanço, a cria chutando o meu ventre. “Futuro dôutor advogado da família”, alegrava-se o Coronel Borges sem ao menos saber, prontamente, o sexo do bebê. A alegria esvaziou-se quando no parto dei-lhe uma menina. Naquela noite, ele se ajuntou com os amigos coronéis e bebeu a noite toda por causa do desgosto de não ter tido um filho homem.

Tem tempo”, disse-lhe o amigo Coronel Campos. Borges embuçou a ideia e me teve alguns dias após o parto. Queria um filho homem. Durante a noite, repassava urgente pelo meu corpo. Nas manhãs, reparava ansioso a minha barriga. E, então, que então, lhe raiou grande entusiasmo a minha segunda gravidez.

 

Cercava-me de mimos, enchia-me de cuidados … “Meu rebento tem que nascer com saúde de ferro! Homem macho! Não deixem a sua senhora sozinha!”, o coronel empunhava a ordem às escravas que cuidavam noite e dia de mim.

Mas os mimos e os cuidados se foram quando lhe dei um botãozinho de rosa, a quinta filha. “Diabo do céu!”, gritou o Coronel, colocou o chapéu de palha e foi-se tomar pinga outra vez.

“Tem tempo” – disse-lhe o amigo de novo. Borges alegrou-se novamente, mas logo perdeu o ânimo, ao passar dos dias, quando a minha barriga não cresceu. Mas o tão esperado filho nasceria de outro ventre.

Com um mês de vida o bastardo e a sua mãe aconchegaram-se na casa grande. O Coronel Borges dava toda a sua atenção ao mestiço e a sua amante, Maria do Carmo. Não lhe importava que fosse, também, filho de escravo e que os amigos debochariam desse fato, o que lhe valia era a masculinidade. Finalmente um herdeiro para tocar o legado da família.

No início, senti-me humilhada por viver sob o mesmo teto da amante do meu marido, mas criei um afeto por Maria do Carmo e pelo favor que ela me fazia, manter Borges longe de mim. Antes carecesse de rebaixamento do que ter o Coronel mexendo no meu corpo novamente.

De pronto, criei suas cinco filhas, sem a voz de reprovação do pai, que a elas não amava. Ensine-lhes a serem prendadas, mas com um toque de esperteza: “Ser mansa, mas também ser diligente. Carecer de saber ler e escrever para não ter uma vida como a minha, fatal”, dizia-lhes, todos os dias. Quero um bom bocado para elas, que não tive.

E assim os dias foram-se passando e o Coronel Borges caiu de cama, doente. Nenhum médico descobriu que mazela o condenava: “Sem esperança”, disse o doutor Ribeiro, mas eu e a Maria do Carmo continuávamos cuidando de Borges, dando-lhe o chá matinal. Um preparo “especial” de ervas feito pela escrava, ensinado por sua mãe-avó. Por valia, o Doutor Ribeiro tinha razão e o Coronel acabou morrendo, após algumas semanas.

O silêncio da liberdade ecoou na casa grande para mim e para Maria do Carmo. Livres da desgraça dos Borges, tornamo-nos amigas íntimas. Duas flores que desabrochavam juntas e se alegravam, ao anoitecer, com a morte do coronel.

Sidy Batalha

 

 

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