CONTO – Espelho, espelho meu.

Quero a minha juventude de volta…[1]

Repetiu Narcisa absorta em si mesma ao observar a sua imagem no espelho do banheiro, o único que havia sobrado na casa. À medida que a idade de Narcisa avançava mais procedimentos cirúrgicos a aposentada fazia: preenchimento facial com botox era o processo que a ex Miss mais adorava ser submetida. As rugas ficavam menos visíveis, a pele tomava uma dimensão jovial, nesse momento ela podia admirar sem medo o seu reflexo.

Narcisa era um poço de vaidade, tingia os próprios cabelos loiros trancada no banheiro. Ninguém podia saber da existência de fios brancos em sua linda madeixa dourada. Durante a semana praticava yoga e fazia ginástica, intercalando com as sessões psicológicas. No fim de semana relaxava com a acupuntura, dispensando assim a ansiedade e as tensões sociais e domésticas.

Divorciada há sete anos, após descobrir as traições do marido com suas joviais alunas universitárias, Narcisa possuía um amante; Eros, um jovem modelo que não entendia muito da gramática da língua portuguesa, mas falava inglês fluente e tinha um corpo perfeito e a pele bem bronzeada. As lentes de contato dental do rapaz hipnotizavam Narcisa ao ponto dela assinar os cheques sem pestanejar.

O único filho, Hermers, mal parava em casa. Fisiculturista por paixão, rodava o mundo em competições acirradíssimas. Quando Narcisa passava dias inteiros sozinha em sua mansão arrependia-se de ter incentivado o filho a viver no nomadismo.

Em uma noite comum igual a todas as outras noites, havia uma levíssima embriaguez nos passos de Narcisa. Com cinquentas anos presumíveis, naquele exato momento, sem nenhuma companhia, sem olhos e mais olhos para vislumbrarem a sua beleza recém-aflorada, a eterna Miss encheu a banheira – usava o seu velho roupão vermelho – mas não entrou. Ajoelhada diante da banheira e paralisada pela lembrança de sua beleza, refletida no espelho da memória, Narcisa se afogou em sua própria imagem.

O corpo da Miss em decadência foi encontrado na manhã seguinte pela empregada. Após ter sida desprezada durante vários anos pela imprensa, a sua imagem finalmente voltou a estampar as capas das revistas mais famosas do país: “Beleza não tem fim, morre a Miss Universo Narcisa Campos”.

[1] Trecho do livro As horas nuas de Lygia Fagundes Telles.

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