Resenha crítica: Personagens psicopáticos no palco – Freud

A análise freudiana da tragédia pode ser relacionada à representação de personagens psicóticos no palco a partir da ideia de catarse, ou seja, uma purificação emocional do espectador ao entrar em contato com sentimentos intensos como medo e compaixão. Freud sugere que uma tragédia reabre fontes de prazer e gozo ligadas à nossa vida afetiva, permitindo que conteúdos reprimidos ou inacessíveis encontrem uma via de expressão.
No caso de personagens psicóticos, o teatro pode amplificar esse efeito ao apresentar indivíduos que vivem uma ruptura com a realidade, expressando desejos, angústias e impulsos que, na vida cotidiana, são censurados ou reprimidos. Essas figuras desafiam os limites entre sanidade e loucura, forçando o público a confrontar o que está latente no inconsciente coletivo.
Um exemplo da série clássica Rei Lear , de Shakespeare. O protagonista atravessa uma jornada de delírio e sofrimento que não apenas expõe sua fragilidade psíquica, mas também provoca no espectador uma confusão de terror e identificação. O mesmo ocorre em Hamlet , onde a fronteira entre a lucidez e a loucura se torna ambígua, gerando reflexões profundas sobre o próprio funcionamento da mente humana.
Freud também aponta que, assim como no cômico e no chiste (piada), a tragédia revela aspectos ocultos do psiquismo. No caso dos personagens psicóticos, sua fala fragmentada, seus gestos exagerados e sua desconexão com a realidade podem ser vistos como manifestações simbólicas do inconsciente, que, ao serem teatralizados, permitem ao espectador acessar, ainda que perfeitamente, esses conteúdos reprimidos.

 

Dessa forma, o teatro trágico, ao explorar a psicose, não apenas cumpre sua função aristotélica de provocar a catarse, mas também se torna um espaço de investigação sobre os limites da sanidade, os mecanismos do inconsciente e a própria condição humana.
Freud sugere que o ato de assistir a um espetáculo, especialmente quando envolve personagens psicóticos, permite ao adulto uma experiência semelhante à da brincadeira proporcionada à criança. Na infância, brincar é um meio de expressão e elaboração de desejos, conflitos e fantasias, permitindo que a criança explore diferentes papéis e situações sem as consequências do mundo real.

Da mesma forma, o espectador adulto, ao se envolver emocionalmente com personagens psicóticos no palco, vivencia um tipo de “brincadeira psíquica”. Ele participa, ainda que indiretamente, das angústias, impulsos e delírios dessas figuras, sem o peso da responsabilidade ou do perigo real. Esse envolvimento desperta expectativas intensas, como a criança sente ao brincar, e pode ser extremamente excessivo, pois permite que o público acesse e elabore aspectos reprimidos de sua própria psique.
No caso dos personagens psicóticos, essa experiência se torna ainda mais marcante porque eles frequentemente representam desejos proibidos, medos profundos ou estados psíquicos extremos que, no cotidiano, são evitados ou negados. Ou seja, o espectador, na vida cotidiana, sente-se pequeno, impotente e incapaz de realizar grandes feitos. Ele reprime suas ambições e desejos de protagonismo porque a realidade o força a se encaixar em um sistema que não gira ao seu redor. No entanto, ao assistir a um espetáculo, especialmente quando há personagens psicopáticos no palco, essa dinâmica muda.
O teatro permite que o espectador projete seus desejos mais profundos no herói ou no anti-herói da peça. Mesmo que não possa agir como esse personagem na vida real, ele se identifica com ele e experimenta, de forma vicária, a sensação de poder, controle e liberdade que tanto deseja. No caso de um personagem psicopático, essa identificação pode ser ainda mais intensa porque essas figuras desafiam as normas sociais, fazem o que querem e impõem sua vontade sobre os outros – coisas que o espectador, preso às regras da sociedade, nunca poderia fazer.
Assim, os atores e poetas têm um papel fundamental: eles cumprem que o público, por meio da ficção, viva experiências que seriam inatingíveis na vida real. O teatro se torna, portanto, uma espécie de canal para realizar fantasias reprimidas, dando ao espectador uma ilusão momentânea de grandeza e protagonismo.

Outro ponto importante a ser comentado é que o drama psicológico se transforma em psicopatológico quando o conflito retratado não ocorre mais entre duas forças conscientes equivalentes, mas entre um desejo consciente e um impulso inconsciente reprimido. Para que o espectador consiga extrair prazer desse tipo de drama, ele precisa ser neurótico, pois apenas um neurótico pode encontrar satisfação no reconhecimento parcial de seus próprios impulsos reprimidos. Sendo assim, para alguém que não é neurótico, esse tipo de revelação causa apenas repulsa e reforça seu mecanismo de repressão. Isso acontece porque, no não-neurótico, o recalcamento foi bem-sucedido e não exige esforço contínuo para ser mantido. Já no neurótico, a repressão nunca é completamente estável, exigindo um gasto constante de energia para conter os impulsos reprimidos. Assim, ao assistir a um drama que expõe esses conflitos internos, o neurótico experimenta tanto um alívio momentâneo (por não precisar gastar energia reprimindo a moção inconsciente) quanto uma resistência, pois o reconhecimento desses impulsos pode ameaçar seu equilíbrio psíquico.

Freud, portanto, sugere que esse tipo de drama provoca no público uma experiência ambígua: ao mesmo tempo em que pode ser prazeroso, também desperta resistência, pois expõe tensões internas que o espectador pode não querer encarar conscientemente.
Freud analisa as dificuldades de representar personagens psicopáticos no palco e explica por que muitos deles acabam sendo ineficazes na dramaturgia, assim como na vida real. Nesse caso, para que um personagem neurótico seja convincente e envolvente, o público precisa acompanhar o desenvolvimento da neurose ao longo da peça. Se o espectador é simplesmente apresentado a um personagem que já está completamente neurótico, sem ter acompanhado a origem e o desenvolvimento do conflito psíquico, ele não consegue se envolver emocionalmente. Em vez de compreender a complexidade da doença, ele apenas a identifica como um problema médico e perde o interesse dramático. Além disso, a identificação com o personagem é essencial para o sucesso da obra. O espectador precisa se colocar no lugar do personagem e compartilhar suas angústias. No caso da peça Die Andere, de Hermann Bahr, Freud aponta que há uma falha nessa identificação, pois o público não consegue aceitar a ideia de que apenas uma pessoa específica possa satisfazer completamente outra, tornando a premissa artificial e pouco envolvente.

Outro ponto fundamental é que o drama deve permitir que o espectador vá desvendando a psicologia dos personagens ao longo da peça, em vez de ser apresentado a um estado mental já definido. Se tudo estiver explícito desde o início, a experiência se torna enfadonha e a resistência do público aumenta. Dessa forma, Freud conclui que a eficácia de personagens psicopáticos no teatro depende da labilidade neurótica do público, ou seja, da sua predisposição a se identificar com os conflitos psíquicos apresentados, e da habilidade do dramaturgo em construir a narrativa de forma envolvente, conduzindo o espectador gradualmente à compreensão do conflito interno do personagem. Se o autor falha nesse processo, o público simplesmente rejeita o personagem, assim como faria na vida real, considerando-o apenas um caso clínico sem valor dramático.

 

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